sábado, junho 30, 2007

Evilásio e o Habeas Corpus

Nos últimos anos, o trabalho me tem sido generoso em oportunidades de visitar minha terra, Salvador, e assim poder passar uns dias com meus pais, rever irmãs e amigos, parentes, sabores e lugares da capital da Bahia. Sair a pé pela cidade, do Campo Grande ao Pelourinho (êta! tá parecendo letra de música de bloco baiano!), refazendo trajetos há muito e muitas vezes vividos, respirando os sons da cidade, saboreando imagens... Ou uma ida até a Cidade Baixa por Itapagipe, berço da minha infância já relatado aqui em “As mães e as manhãs” e na lembrança da baiana Leonor em “A culpa é do orégano”, para ver qual o aspecto atual da antiga casa da Rua da Imperatriz. Conferir se finalmente despoluíram a Praia da Boa Viagem, relembrar a praia do Humaitá, provar os sabores da sorveteria da Ribeira, sorver uma cerveja gelada e comer siri-bóia no bar da Tia Maria, na Pedra Furada... Minha terra é um insulto à tristeza.

Mas é um convite à placidez e à meditação, quando o dormir dos alto-falantes e sistemas de som presentes em praticamente todas as barracas de praia nos permite esse sossego. Pois nada como ler um livro e olhar o mar, olhar o livro e ler o mar, numa mesinha à sombra, num dia de semana de praia vazia.

Sempre que tocando em Salvador, dispenso o hotel e vou para a casa dos meus pais, na Pituba, bairro litorâneo que cresceu e se afirmou na preferência da classe média soteropolitana entre os anos 60 e 70. Sua praia já foi muito freqüentada, mas a crescente poluição do Rio Camurujipe, que deságua na praia vizinha de Costa Azul, diminuiu em muito sua balneabilidade, porém as barracas de praia, a cerveja gelada, os caranguejos e a placidez continuam lá, a alguns passos de casa.

Numa dessas manhãs, já perto do meio-dia, me instalei num banquinho de uma daquelas barracas silenciosas, ao som de um mar maculado, mas ainda de um tom azul Caymmi a espumar um branco oxalá nas pedras e areia, e fui recebido pela simpatia sarará da Dona, cerveja super gelada mergulhando naquela cápsula que se pretende conservadora da temperatura ideal da “loura”. Mansamente agradecido à qualidade de tal aquarela de etnias, cores humanas e “cervejais”, arrisquei um caranguejo.

-Não tem! Caranguejo tá um horror de se encontrar. Dizem que deu uma praga que não se acha mais caranguejo que preste por aqui, mandam vir de avião, de Belém do Pará e eu não tenho o pistolão de conseguir... Mas tem lambreta, agulhinha-frita, sururu...

Aproximava-se a hora do almoço e eu fazia o pacote perfeito para um dia de folga: Uma caminhada até a praia, uma cervejinha, algumas páginas, conversa fiada e contemplação, antes da caminhada de volta a casa. Caranguejos, com a trabalheira que dão para serem comidos, até abrem o apetite, até porque para se saciar de caranguejo são necessários alguns, não um apenas. Sem caranguejos, já perto de almoçar, resolvi ficar somente na cervejinha mesmo

Então, como do nada, surge alguém que pode agregar se não caranguejos, pelo menos outros crustáceos ao cardápio da barraca: Um vendedor de siris. Um tipo baiano espigado, chapéu de palha, samburá cheio de siris pendendo do ombro, se chega à barraqueira com familiaridade e é recebido efusivamente:

- Digaí, freguesa, olha que bitolão de siri? Tirado hoje do mar...

-Mas rapaz!!! Quem é vivo sempre aparece! Quequiá, menino? Como você tá, rapaz? Tomou juízo?

-Vamos indo, né... Correndo pro bicho não pegar, fazendo minha parte... Atrás do meu sustento...

-E aquele amigo seu, aquele que não é muito certo, como é... Evilásio! Evilásio tá preso ainda?

-O quê? Evilásio? Evilásio tá é muito bem solto. Se não tiver roubando de novo, amén!

-Marrapaaz, aquele apronta muito!

-Evilásio arranjou um advogado bom, sabe lá como, o advogado conseguiu um Corpus Christi pra ele, que já tá na rua tem tempo...

Não pude conter o riso diante da expressão equivocada do amigo do tal Evilásio. A barraqueira perdeu a fala e arriou sua cabeça em sacolejos de riso sobre o balcão da barraca, olhava pra mim, entre uma gargalhada e comiseração pelo amigo:

-Quiá quiá quiá... Isso é uma heresia, rapaz, você quis dizer Habeas Corpus, né não? Ah esse menino... Quáááásss... -as lágrimas chegavam a brotar dos seus olhos.

-E eu sei? Não tenho formação pra isso não! , ria também o pescador e, virando-se na minha direção: Não é, meu senhor? Cadê o estudo que o governo não dá? , politizou nosso amigo, com o que concordei.

-Claro... E certas palavras confundem qualquer um... É isso mesmo.

Fiquei imaginando a saga daquele conterrâneo, buscando no mar seu sustento, seguindo caminho árduo, mas que lhe dava as portas e braços abertos de amigos como aquela barraqueira, e tendo o privilégio de poder rir de si próprio, por não precisar de habeas corpus da sua consciência, como necessitaria Evilásio, uma arraia-miúda perto dos tubarões que estão soltos por aí, roubando de novo e sempre.

quarta-feira, junho 20, 2007

PRESENTES DO ESPÍRITO SANTO E OUTRAS CONSIDERAÇÕES



Tirar as estradas dos mapas, viajar pelos sertões vencendo cada milímetro do atlas escolar, apertado entre irmãos numa Rural Willys, ou numa Kombi, isso é recorrente nas minhas lembranças da infância. Acompanhar meu pai em suas viagens pelas cidades do interior baiano onde ele ia inspecionar o ensino público do Estado. Tão devotado meu pai, um educador apaixonado pela profissão.

No início , o mundo rodoviário era entre Salvador e Seabra, na Chapada Diamantina , terra do meu pai e meus avôs, e cidades circunvizinhas. Um milhar de quilômetros adiante da Chapada, diziam as placas, havia Brasília.

Brasília.

Era só meter o pé na estrada, atravessar o São Francisco na balsa, comer muita poeira e chegar à Meca de JK, eu imaginava ainda menino. A Serra da Mangabeira, imponente, parecia demarcar o início da mudança de Sertão para Cerrado.

Sobre Brasília, tanto a se falar, mas o que prezo muito é a invejável condição que uma capital nascida do nada pode reunir: Exatamente por nascida do nada, nos trazer tudo. Todo o norte, todo o nordeste, todo o centro oeste, sul e sudeste, verdes, recém chegados , a criar animadas rodas de amigos, a conviver dendê com chimarrão, chula com carimbó , samba de roda com samba-canção.

Brasília segue submetida à pechas injustas e cruéis para uma cidade. Xingamentos que deveriam atingir sim a determinadas figuras que habitam seus gabinetes e escritórios de lobbyes, mas que têm suas matrizes, seus nascedouros de lama em seus estados de origem. Melhor ainda seria se atingissem antes nossas próprias consciências ao votarmos em nossas cidades, tendo compaixão com a Capital e com o País, mandando gente honesta para lá.

Mas muita gente honesta e amiga deixou suas terras, venceu suas serras da Mangabeira e aportou na capital ,desde sua construção até hoje, eleitos pela obrigação profissional , em sua maioria.

São inúmeras as pessoas em Brasília com quem desenvolvi laços de graus variados de amizade. Laços que desatam nós de preconceitos regionais, que nos mostram quão infame é qualquer motivação separatista ou xenófoba neste País.

A bordo da hospitalidade de famílias amigas , como a de Stenio Bruzzi e Dona Regina Vereza Bruzzi, pais do grande amigo Reginaldo, da Rita e da Marta, pude ampliar o alcance do meu atlas, da minha imaginária viagem dentro do mapa, observando diminuir a quilometragem restante para o destino daquela viagem de férias: O Estado do Espírito Santo, para onde seguia a família Bruzzi, eu convidado deles.

Lagoas de Coca-Cola, a fábrica de Bombons Garoto, a Praia da Costa, a Barra do Jucu, a vida marinha à mesa, eis o Espírito Santo. A beleza suave das capixabas, a fala meio mineira à beira mar. Ao norte, a Bahia, ao sul o Estado do Rio, a Oeste Minas, a leste o oceano com marlins azuis, badejos, peroás e onde a imaginação nos levar, o Espírito Santo , esse embaixador do criador, o canal de comunicação com o Pai.

Voltaria depois para participar de um show de aniversário da cidade de Cachoeiro do Itapemirim acompanhando o artista brasiliense Renato Mattos , quando mais um presente o Espírito Santo me deu: Um passeio numa Maria Fumaça por serras enflorestadas, com bandas de música nas estações, com presépios, laranjas, feijões e uma música de Gilberto Gil no walk man embalando o café-com-pão-café-com-pão do som ferroviário:

João Sabino :

Tava comendo banana pro santo

Pra quem?

Pro santo

Pro santo espírito senhor

Pai do filho do Espírito Santo

Senhor pai do filho do Espírito Santo

Senhor pai de quem?

Filho do Espírito Santo

Filho de uma localidade de lá

Nessa localidade de lá

Uma abertura de si

Uma embocadura pra dó

Sustenindo uma passagem pra ré

Mi bemol

Já traz o som, o eco

A claridade

Ainda um pouco abaixo do horizonte

Atrás do monte

De mi pra fá

Sustenindo, suspendendo

Sustentando, ajudando o sol

Nascer

Aqui na terra

Atrás da serra

Cachoeiro do Itapemirim

O sol nascer

João Sabino, eu imagino

Quando era menino, via assim

Melhor que qualquer fotografia , a música parece nos trazer de volta não só as imagens como os cheiros, o ar entrando pelas janelas do trem, a densa floresta debruçada sobre a serra recortada pelos trilhos, precipício acima e abaixo, uma beleza natural que parecia gritar ,abafando o ruído do trilhar do trem. Isso foi há mais de 20 anos.


Dia 16 de junho , sábado passado, cheguei quase à metade da idade do meu pai. Fiz quarenta e cinco, ele faz 92 em setembro. Segundo ele, cheguei à idade da maturidade, quando melhoramos, depuramos o que de melhor temos sido para conduzir nossas vidas, pois é o que temos daqui por diante. Tomara que esteja certo, pois percebi que o nível 4.5 traz de volta o embevecimento de menino e uma certa fragilidade que nos faz crescer diante de quem nos gosta, por aguçarmos nosso olhar, aprimorarmos nosso toque, dosarmos nossas palavras, nos despedirmos daquela tola mas necessária sensação de independência e onipotência que se inicia após a puberdade e nos acompanha durante um bom tempo, mas que tem prazo de validade.

Nesse dia eu estava em Vitória , no Espírito Santo, para participar de mais um show acompanhando Jorge Vercilo , no Teatro Glória. E foi sob efeito de 45 anos de vida e diante da platéia, que me vi por ela homenageado, pelo Vercilo e todos os outros irmãos dessa nômade família que é a banda.

Lá no palco ouvindo um parabéns pra você, encabulado, eu notava que um casal me acenava com um instrumento musical que eu não conseguia identificar na hora, mas que me proporcionou muita alegria, quando recebi das mãos de Néia e Júnior uma autêntica Casaca do Mestre Vitalino.

Não, o frio não era intenso, nem Mestre Vitalino se trata de um nome destacado em confecções de inverno. Casaca é como se chama uma espécie de reco-reco usado pelas bandas de Congo do Espírito Santo, trabalhado e esculpido com esmero, de sonoridade forte e expressiva.

Um mimo sonoro que vai me acompanhar em muitos sons por aí, marcando mais uma vez na minha vida a simpatia do povo capixaba.

Era mais um presente do Espírito Santo

És empírico Santo, Espírito. Só experimentando pra saber.