Que me desculpem os vegetarianos, pródigos por uma dieta piedosa com os animais e prudentes com seus sistemas digestivos, mas a carne faz parte da dieta humana sob diversas formas, e muita gente, me incluo, gosta de saborear um bom bife. De tempos para cá, praticamente reduzi à metade o consumo de carne bovina, mas há meios especiais de saboreio dos quais não abro mão. Dividindo espaço com um eventual churrasco, uma carne assada de pá ou peito, ou uma paleta de carneiro dormida em cominho e hortelã, a carne de sol, (ou "do" sol), pontifica entre as especialidades da casa.
A carne de sol tem origens diversas, histórias contadas de todo canto, mas a verdade é que em comum todas as versões se encontram no fato de que alguem precisou um dia salgar a carne para conservá-la em tempos sem geladeira. Quanto mais sal, mais tempo de conserva.Na época do Descobrimento, as carnes, além do sal, eram protegidas de fungos, moscas e suas larvas com sal e muito tempero, as chamadas especiarias, que eram base das transações econômicas da época e citadas pelos historiadores como motivadoras das rotas marítmas que deram outra cara ao mundo.
A carne de sol tem versões diversas de acordo com a região: umas se curtem mesmo ao sol, outras depois de salgadas deitam seu soro sob o sereno. Os cortes variam com as preferências, como mudam os nomes das partes do boi Brasil afora.
As minhas versões preferidas são as da cidade de Rui Barbosa e da Chapada, na Bahia, as servidas em Natal RN, Pernambuco, Paraíba e as espetaculares carnes de sol de carneiro e bode de Teresina.
Mas lembro das viagens com meus pais a Feira de Santana, na Bahia ainda garoto. A feira "de Feira", gigantesca, com gente vinda de todo lugar para vender e comprar, exibia nas suas barracas aquelas mantas enormes de carne do sol, que minha mãe cuidadosamente ia escolhendo, enquanto eu salivava antecipando a hora do almoço que viria sob a regência daquelas mãos mágicas a preparar um bom pedaço para ser comido com pirão de leite, um feijaozinho, um suco de mangaba...
Patinho, coxão-mole...Mais magra a primeira, mais adiposa a segunda, eram as preferidas de Dona Ruth.
E a cada nascer do sol, essa iguaria volta e meia aparecia na mesa lá de casa. Depois, morando em Brasilia, aproveitamos a boa presença nordestina no lugar para continuar no hábito. Mas sempre, comprando pronta em açougues onde um bom nordestino conservava carne e cultura. E assim aderiram também ao gosto a minha companheira e os nossos filhos.
Aqui no Rio, ao chegar, percebi que carne do sol não se encontra em todo lugar, perto de casa. É preciso que se procure restaurantes especializados, ou então indo direto à Feira de São Cristóvão, onde o que não falta é opção para se comprar, seja nos restaurantes ou nos açougues.
Vindo com a força do hábito, era pouco para mim. Não ter carne do sol no açougue da esquina era o fim. Resolvi fazer a minha própria. O sertão bravio clamava no meu estômago. As caravanas vencendo a caatinga do interior baiano rugiam no DNA. Brumado, Boninal, Seabra, Lençois...A rude carne do sol que se apaziguava as faces ensolaradas e curtidas do sertão baiano chamava o frugal bife com fritas e feijãozinho preto carioca de "fulêro".
Parti para um açougue, comprei um bom pedaço bem gordo de chã (como chamam aqui o coxão-mole), e o coloquei na tábua. Abri lateralmente, no sentido da gordura para baixo, um bifão de uns 3,5 cm de altura até pouco antes de transpassar. Em forma sanfonada (tudo a ver!), no corte, voltando no sentido contrário, fui dando forma àquela peça que seria a primeira de muitas.Salguei, com sal fino (é melhor para controlar a quantidade. O sal grosso passa do ponto muitas vezes), deixando a mesma com uma crosta esbranquiçada de sal e a deitei numa vasilha grande. Seis horas marinando, escorri o soro, salguei de novo. Quatro horas marinando, escorri mais soro e acrescentei um copo de leite integral, onde ficou por mais 4 horas. (O leite redistribui e equilibra o sal, retirando o excesso sem tirar o sabor da carne, como a água faria. A carne de sol desse preparo não precisa escaldar nem por de molho.) Continuando, já de noite, pendurei a danadinha protegida por um filó e a deixei serenar, a retirando no final do dia seguinte...Estava pronta a minha vingança cultural, satisfeito meu paladar e fica como receita para quem ler.
Só lembrando: Carne de sol e carne-seca ou charque, são coisas diferentes. Cuidado com a pressão alta!
abraços
João Bani