O ônibus era puro barro, numa Brasília das primeiras chuvas, avenidas monótonas, paisagens que só o tempo deixava desiguais. Era preciso passar muitas vezes por elas para aprender a diferenciar cada quadra da outra, cada parada da próxima ou passada... A música na minha cabeça rolava entre Deep Purple e Noel Rosa. Os primeiros me haviam chegado muito tempo antes, pelos discos do meu irmão. O Poeta da Vila, por uma coleção mensal sobre MPB que tínhamos em casa.
Smoking “under” the water, quase como Jon Lord, Blackmore e tribo, com um cigarro aceso e quase molhando, mas sem mosquito para espantar quase como Noel, eu sem saber vivia o porque da música ser um traço definitivo na vida de certas pessoas. Diante do silêncio da capital nos anos 70, só Música para me fazer companhia nos percursos daqueles ônibus mudos e imundos. Eu desenvolvera em minha mente uma discoteca. Ainda não havia chegado o walkman, hoje eletrônico dinossauro. Rádio com “egoísta” poderia ser uma solução. Mas em stereo, com repertório próprio e com o arranjo destacando o que se queria, somente a Rádio Cabeça.
Morava na Vila Planalto, uma comunidade remanescente dos pioneiros da construção da Brasília, numa bela casa de madeira, com um grande quintal, numa família onde os discos juntavam o sertão de Luis Gonzaga dos meus pais, reminiscências da Jovem Guarda, Chico Buarque, Caymmi, Gal, Gil, Elis, Caetano, Stones, os já citados Purple e Noel, coisas da Motown...Era um ecletismo bastante saudável. Gosto muito do que ouvi. Hoje, sem sugerir uma palavra que os direcione, vejo meus filhos gostarem também de muitas dessas coisas. Descobriram na internet.
A mudança para Brasília, que ocorrera anos antes, fora um dado importante nessa musicalização. As interações culturais da cidade , com gente chegando de todo o país e muitos estrangeiros residentes, destacavam personagens da nova cena musical naqueles tempos ainda de regime militar, quando aconteciam pequenos filhotes de Woodstock nos Concertos ao Ar Livre que os chamados “agitadores culturais” promoviam nas entrequadras.
Mas na minha Rádio cabeça, no Norte daquela bússola onde imerso eu seguia olhando o céu de frente na Capital, naquela metade dos anos 70, um repertório novo surgia . Rose, uma das minhas irmãs, verdadeira Rosa dos Ventos Musicais, chegara em casa com um LP, Minas, de um cantor e compositor que então já era consagrado, mas que passara ao largo da minha Rádio cabeça durante algum tempo. Ouvi, e ouvia o Gran Circo de introdução triunfante, com harpas , com vocalizes do Pará em Fafá, as percussões ricas, o Trastevere me apresentando free jazz com vocais de catedrais. Os compassos compostos soando naturais, as Asas da Panair, o beijo Partido unindo Paula a Bebeto.
Minas , o disco, e Minas , a terra, me mostravam caminhos para tanto lugar... Com divisa relativamente perto do Distrito Federal, pelas bandas da obra de Guimarães Rosa, bem ali estava a Minas do peixe vivo, do Juscelino que gerara aquela Brasília onde embalava os percursos da minha Rádio imaginária agora ao som de um filho seu e sua turma.
Minas, o disco, me levou a Geraes, me resgatou o Clube da Esquina anterior que eu não conhecera, me impressionou com Raça. Me mostrou Journey to Down , viagem melhor que as bad trips de tantos heróis da época. Naqueles ônibus, eu pagava a passagem com um Tostão, One Coin, mais valioso que um milhão. Lília era trilha sonora da L-2, superquadras passando... Com Fé cega e Faca amolada eu enfrentava o vazio do Eixo Monumental. “Menino” me mostrava em barro as crianças largadas na Rodoviária, “Fazenda” era orvalho no seco Cerrado...E eu com o silêncio do ônibus, com gente tão calada nos bancos, tempos de regime militar...Que rádio estariam ouvindo, que programação teriam para animar o silêncio daqueles medos?
Pensei em escrever sobre isso para celebrar uma alegria espiritual e profissional que me tem sido ofertada há alguns anos. A de poder, eventualmente, colocar a serviço do maior hitmaker da minha “Rádio Cabeça” os meus tambores, minha música, o que não deixa de ser uma retribuição. Ele me deu a música, que a tome de volta. Há alguns anos, pela generosidade da confiança do amigo e mestre de percussão Marco Lobo, titular absoluto do time do Bituca, tenho tido oportunidade de participar de shows do Milton, como substituto. Na última delas, em Belo Horizonte, diante de uma multidão na Praça da Estação, tive a boa e velha Rádio Cabeça a me auxiliar , na lembrança daquela trilha sonora que me conduzira pelas ruas de Brasília e que afinal me levara até ali, àquele palco. Fosse futebol o ofício da minha alma e seria como estar em Santos jogando bola com Pelé.
A diferença é que nos jogos do time do Bituca, ninguém perde.
A Rádio Cabeça agradece.
2 comentários:
muito legal este seu post e suas lembranças musicais...
como vc eu tb vivi um tempo em Brasília... como vc eu curti e ouvi bituca e a turma de minas, entre outras coisas, e aquilo era bom demais... era um mundo... tinha o sonho de um dia tocar com eles, fazer parte da viagem... porém, me tornei um músico, estudei, trabalho nisso e nunca toquei com ninguém...
Bahia,Bahia...minha terra da felicidade...adoro te ler,é quase como voltar,é um bocadinho partir...saudades de vc,meu amigo!
Beijo meu na Vânia e nas "crianças",
Sua amiga ,
Luanda!
Postar um comentário