Nos últimos anos, o trabalho me tem sido generoso em oportunidades de visitar minha terra, Salvador, e assim poder passar uns dias com meus pais, rever irmãs e amigos, parentes, sabores e lugares da capital da Bahia. Sair a pé pela cidade, do Campo Grande ao Pelourinho (êta! tá parecendo letra de música de bloco baiano!), refazendo trajetos há muito e muitas vezes vividos, respirando os sons da cidade, saboreando imagens... Ou uma ida até a Cidade Baixa por Itapagipe, berço da minha infância já relatado aqui em “As mães e as manhãs” e na lembrança da baiana Leonor em “A culpa é do orégano”, para ver qual o aspecto atual da antiga casa da Rua da Imperatriz. Conferir se finalmente despoluíram a Praia da Boa Viagem, relembrar a praia do Humaitá, provar os sabores da sorveteria da Ribeira, sorver uma cerveja gelada e comer siri-bóia no bar da Tia Maria, na Pedra Furada... Minha terra é um insulto à tristeza.
Mas é um convite à placidez e à meditação, quando o dormir dos alto-falantes e sistemas de som presentes em praticamente todas as barracas de praia nos permite esse sossego. Pois nada como ler um livro e olhar o mar, olhar o livro e ler o mar, numa mesinha à sombra, num dia de semana de praia vazia.
Sempre que tocando em Salvador, dispenso o hotel e vou para a casa dos meus pais, na Pituba, bairro litorâneo que cresceu e se afirmou na preferência da classe média soteropolitana entre os anos 60 e 70. Sua praia já foi muito freqüentada, mas a crescente poluição do Rio Camurujipe, que deságua na praia vizinha de Costa Azul, diminuiu em muito sua balneabilidade, porém as barracas de praia, a cerveja gelada, os caranguejos e a placidez continuam lá, a alguns passos de casa.
Numa dessas manhãs, já perto do meio-dia, me instalei num banquinho de uma daquelas barracas silenciosas, ao som de um mar maculado, mas ainda de um tom azul Caymmi a espumar um branco oxalá nas pedras e areia, e fui recebido pela simpatia sarará da Dona, cerveja super gelada mergulhando naquela cápsula que se pretende conservadora da temperatura ideal da “loura”. Mansamente agradecido à qualidade de tal aquarela de etnias, cores humanas e “cervejais”, arrisquei um caranguejo.
-Não tem! Caranguejo tá um horror de se encontrar. Dizem que deu uma praga que não se acha mais caranguejo que preste por aqui, mandam vir de avião, de Belém do Pará e eu não tenho o pistolão de conseguir... Mas tem lambreta, agulhinha-frita, sururu...
Aproximava-se a hora do almoço e eu fazia o pacote perfeito para um dia de folga: Uma caminhada até a praia, uma cervejinha, algumas páginas, conversa fiada e contemplação, antes da caminhada de volta a casa. Caranguejos, com a trabalheira que dão para serem comidos, até abrem o apetite, até porque para se saciar de caranguejo são necessários alguns, não um apenas. Sem caranguejos, já perto de almoçar, resolvi ficar somente na cervejinha mesmo
Então, como do nada, surge alguém que pode agregar se não caranguejos, pelo menos outros crustáceos ao cardápio da barraca: Um vendedor de siris. Um tipo baiano espigado, chapéu de palha, samburá cheio de siris pendendo do ombro, se chega à barraqueira com familiaridade e é recebido efusivamente:
- Digaí, freguesa, olha que bitolão de siri? Tirado hoje do mar...
-Mas rapaz!!! Quem é vivo sempre aparece! Quequiá, menino? Como você tá, rapaz? Tomou juízo?
-Vamos indo, né... Correndo pro bicho não pegar, fazendo minha parte... Atrás do meu sustento...
-E aquele amigo seu, aquele que não é muito certo, como é... Evilásio! Evilásio tá preso ainda?
-O quê? Evilásio? Evilásio tá é muito bem solto. Se não tiver roubando de novo, amén!
-Marrapaaz, aquele apronta muito!
-Evilásio arranjou um advogado bom, sabe lá como, o advogado conseguiu um Corpus Christi pra ele, que já tá na rua tem tempo...
Não pude conter o riso diante da expressão equivocada do amigo do tal Evilásio. A barraqueira perdeu a fala e arriou sua cabeça em sacolejos de riso sobre o balcão da barraca, olhava pra mim, entre uma gargalhada e comiseração pelo amigo:
-Quiá quiá quiá... Isso é uma heresia, rapaz, você quis dizer Habeas Corpus, né não? Ah esse menino... Quáááásss... -as lágrimas chegavam a brotar dos seus olhos.
-E eu sei? Não tenho formação pra isso não! , ria também o pescador e, virando-se na minha direção: Não é, meu senhor? Cadê o estudo que o governo não dá? , politizou nosso amigo, com o que concordei.
-Claro... E certas palavras confundem qualquer um... É isso mesmo.
Fiquei imaginando a saga daquele conterrâneo, buscando no mar seu sustento, seguindo caminho árduo, mas que lhe dava as portas e braços abertos de amigos como aquela barraqueira, e tendo o privilégio de poder rir de si próprio, por não precisar de habeas corpus da sua consciência, como necessitaria Evilásio, uma arraia-miúda perto dos tubarões que estão soltos por aí, roubando de novo e sempre.